A primeira celebração em honra ao "Senhor Santos Reis" foi realizada em 1971, organizada por Rubens Carolino de Moraes e seu amigo Antônio de Ambrósio, já falecido. “Seu" Rubens, hoje com 78 anos, participou como folião entre 1971 e 1982. Casado com Edith Maria Moraes, ele vive na vila de Alto Diamantino, município de Torixoréu/MT desde 1970.
Em depoimento, Rubens relembra: "Era muito diferente de hoje. A festa nossa sempre foi e ainda é boa. Desde aquele tempo nunca faltou festeiro. Antigamente, íamos a pé em todos os giros (percurso realizado pela folia). No 25 de dezembro, dia de Natal, saíamos para as fazendas com malas nas costas e os instrumentos musicais. Visitávamos cada fazenda, participando com grande alegria. Era uma festa religiosa.
Saíamos a pé para as vilas e fazendas vizinhas. Quando chegávamos os córregos cheios, ajudávamos uns aos outros a atravessar. Eu guiava os foliões, pois tinha muita força nas pernas. Muitas vezes quase rodava nas águas, mas sempre voltava para ajudar o próximo até todos passarem. Em uma das últimas viagens, o córrego estava ainda mais cheio. Carregando o tambor grande, a correnteza quase me derrubou, mas lutei até conseguir atravessar."
A primeira parada e pouso (lugar para pernoitar) da folia aconteceu na Fazenda Laranjeira, propriedade de Maria Carolina, irmã de Rubens, localizada no município de Guiratinga. Os foliões chegaram por volta das 15 horas e almoçaram antes de iniciarem a diversão. Segundo seu Rubens, ele relembra: “Fomos brincar. Brincávamos de verdade, não era como hoje. Os foliões chegam e se esparramam (espalham) pela casa, para sair precisa estar (chamando) reunindo todos. Nós não éramos assim. Naquele tempo éramos nove foliões; hoje restam apenas três: eu, o primo da minha esposa, João Alves Chaves, e o irmão dela, Valdemar.”
"Seu" Rubens destaca que, naquela época, os foliões eram em sua maioria parentes, vizinhos ou pessoas ligadas por laços de afeto e religiosidade, como o sogro “Seu" Manoel, conhecido como Nezinho; Veríssimo, Nucha, “Seu" Olímpio; além dos cunhados João Chaves, Valdir, Valdemar e o primo de sua esposa, João Alves.
João Alves Chaves, de 76 anos, relembra que, antes de 1971, um grupo organizava os festejos de Santo Reis, mas, com o tempo, “a tradição foi interrompida por muitos anos”. Em 1971, ele e alguns amigos decidiram reviver a festividade, garantindo sua continuidade, contando com a participação de "Seu" Rubens. Naquele período, o grupo percorria “as fazendas a pé, formado por 9 foliões e o festeiro, totalizando 10 pessoas”. Eles enfrentaram as adversidades do clima, como chuva e sol, além de “atravessar córregos cheios, carregando malas com roupas e instrumentos musicais nas costas”.
Segundo “Seu" João nas fazendas, os moradores ofereciam abrigo e participavam dos festejos. Eles partiram da vila no dia 25 de dezembro e, até o dia 1º de janeiro, percorriam a região, retornando à vila para continuar as cantorias nas casas do povoado até o dia 6 de janeiro. O dinheiro arrecadado nas visitas às fazendas e na vila era usado para organizar uma grande festa, que incluía leilões, baile, além do almoço e jantar.
O folião "Seu" Rubens, com saudade, relembra com carinho esse período festivo. Tanto a calorosa recepção nas fazendas quanto o retorno para a vila de Alto Diamantino eram momentos marcados por grande prestígio, celebrados com a presença das pessoas e a alegria dos fogos de artifício: “do dia de Natal até 2 de janeiro, íamos às fazendas, trabalhando (serviço sagrado) e brincando com honestidade. Chegávamos lá e, em alguns dias, parecia mesmo uma festa. O pessoal se reunia em roda nas fazendas, assistia às brincadeiras e participava até duas ou três horas da madrugada. De manhã cedo, saíamos novamente, mesmo que alguns ainda estivessem sonolentos, continuávamos o giro, andando grandes distâncias para vencer o dia e, enfim, voltar para casa. A chegada era sempre uma grande comemoração.
O povo da vila se reunia, quando soltavam foguetes na beira da ponte, fosse de um lado ou do outro, e logo a igreja ficava cheia de gente acompanhando os foliões. O dinheiro que arrecadávamos era só de esmolas, pois não havia leilão. Hoje, ganham bezerras, vacas, porcos, carneiros, cavalos e outros animais, e sempre há fartura. Não há brigas ou confusão — é uma festa da irmandade. A alegria é ver tanta gente junta, um encontro que enche o coração”.
Ele continua com entusiasmo: “Íamos de casa em casa com todo prazer. Naquele tempo, não havia leilão; o dinheiro arrecadado servia para preparar um jantar para todos os convidados, e o restante era usado para pagar os músicos. Tocavam a noite inteira, as festas duravam a noite inteira até o amanhecer. Amanhecíamos dançando. Hoje em dia, a festa termina por volta das duas, três ou quatro da manhã. Os jovens de hoje não querem dançar. Nós saíamos por devoção, e onde passávamos éramos bem recebidos, com fartura que nem se compara. Com o tempo, meus filhos e eu assumimos outra festa e conseguimos fazer o evento foi muito bom, com uma renda considerável. ”
De acordo com o relato do “Seu" João ele participou, de forma ininterrupta, até a última festa do "Seu" João Bosco entre os anos de 1971 e 2010. Durante as celebrações, houve encenações de novenas e rezas nas lapinhas. Existem lapinhas organizadas por pessoas como Dona Duxinha, Maria Vasconcelos (Maria do João Davi) e também na igreja. Até hoje, todos os festeiros mantêm a tradição de montar o presépio na igreja. Durante a novena, o terço é rezado diariamente, e no dia da festa é celebrada uma missa. Em alguns anos, também aconteciam batizados e casamentos como parte da programação. Embora esses eventos não tenham sido realizados recentemente.
A referida festa ocorreu em 2016, organizada por “Seu" Rubens, sua esposa Edith e seus filhos e genros: Neuraides Carolina e Francisco Batista, Neura Lúcia e Marco Antônio de Barros, Neura Rúbia e Humberto Carlos, e Rubneide com Marco Antônio Catulé. A celebração dos Santos Reis foi interrompida durante a pandemia de COVID-19, entre 2020 e 2022, e novamente em 2024 devido ao falecimento do folião José Ribeiro de Paulo.
Com emoção, "Seu" Rubens relembra o motivo que o levou a se afastar das festas: "Perdi uma filha e, com o coração pesado, parei. Nunca mais tive coragem de voltar, mesmo sentindo falta”. Ele também recorda outra atividade que desempenhou durante várias festas: “Fui leiloeiro por muitos anos, e as pessoas gostavam de me ouvir gritar leilão. Continuei até que fui picado por um inseto, o que me causou problemas na perna, e precisei parar. ”
Este ano os festeiros Aline Vasconcelos e Jeferson Rodrigues pediram que ele fizesse uma pequena participação no leilão para relembrar os ‘velhos tempos’ e prestar uma homenagem aos antigos festeiros e foliões: “Ela pediu para eu gritar o leilão de algumas prendas para recordar. Fui muito bem aplaudido. Com fé em Deus e Santos Reis, pretendo continuar. As festas de agora são organizadas pelos nossos sobrinhos e amigos. Na próxima, será um vizinho daqui e seu filho, que mora em Rondonópolis. Em outra, serão amigos de Guiratinga e Primavera.”
Ao traçar um paralelo entre o passado e o presente, “Seu Rubens” destaca diversas mudanças, que vão desde o vestuário até o comportamento dos foliões, passando pela organização das festas e a forma de arrecadação de donativos. Ele relembra com saudade os tempos em que a simplicidade e a devoção guiavam as celebrações, contrastando com as práticas mais modernas e as diferentes motivações que hoje movem os participantes: “No nosso tempo, ninguém recebia dinheiro, nem um centavo; fazíamos por devoção, fé e fervor. Hoje, muitos foliões saem para farrear e beber. Nossa folia não tinha cachaçada, mas de uns tempos para cá, isso mudou. Muitos bebem tanto que não aguentam tocar.
Hoje em dia, é diferente porque os foliões andam todos no caminhão. Como dizem, o caminhão é muito confortável, dá para descansar lá dentro. Se chegava num lugar onde não há espaço para acomodar todo mundo, dormem no caminhão mesmo, cada um levando seu colchão e agasalho. O giro, visita as cidades vizinhas. Antigamente, não íamos tão longe, só nos povoados próximos.
A festa de hoje é muito boa, mas, naquela época, havia mais animação por parte dos próprios foliões, mesmo indo a pé. Saíamos apenas com a roupa do corpo e não ganhávamos nada. Hoje, os foliões recebem uniforme, chapéu — tudo muito diferente. Se fosse para sair a pé agora, ninguém toparia mais. Apesar das mudanças, temos muita satisfação em ver nosso povoado pequenininho recebendo apoio da população e das pessoas que vêm participar. Aqui é como uma grande família. Nossa família é extensa, e as amizades são ainda maiores, o que traz uma alegria imensa por termos essa festa aqui”.
Em seu balanço, “Seu" Rubens destaca, de forma histórica, as principais mudanças ocorridas na festa da Folia de Reis. Ele relembra a abundância que marcava as celebrações: "A fartura das festas por aqui era impressionante. Sempre se matava uma vaca, e a comida era oferecida de forma bastante generosa — nunca faltava nada, especialmente carne assada. Desde cedo, o churrasco não parava, com carne sendo preparada até a chegada dos convidados, e a festa se estendia por dois ou três dias." Segundo ele, a essência dessa tradição reside na verdadeira irmandade vivida, um espírito coletivo que torna a celebração única e especial.
Finalizando o mergulho em suas memórias, o folião e leiloeiro “Seu Rubens” conclui com reflexões sobre as festas: "Alguns comentam que, às vezes, a renda da festa não é suficiente para cobrir as despesas, mas, em muitas ocasiões, ainda sobra dinheiro. Em todas as celebrações, são arrecadadas muitas prendas, e boa parte delas é destinada a trazer benefícios para a nossa vila. E os resultados realmente aparecem — como a contribuição para melhorias na igreja. Além disso, meu sobrinho Erlan Carolino construiu o barracão durante sua organização como festeiro de São João Batista em 2024, com o apoio das pessoas que valorizam as tradições festivas da nossa comunidade."
Para o secretário de cultural do município de Torixoréu-MT Vanney Neves: “a Folia de Reis do povoado Alto Diamantino é uma manifestação folclórica no município de Torixoréu, que caracteriza as mais diversas representações populares, com elementos simbólicos unindo fé; devoção e cultura. Os ritos desse culto folclórico, que vai além da liturgia sagrada, num misto entre o profano e a religiosidade, denota o sentimento de orgulho a um legado de pertencimento regional, cultuando uma tradição que remete a valorização do nosso povo, com a afirmação da identidade local, na sua mais genuína demonstração do fazer cultural originário, correspondente aos saberes advindos dos vultos ancestrais”.
Por Gilda Portella - multiartista, sacerdotisa de Umbanda e mestranda do PPGECCO- UFMT